"Outro grande quartel-general era a casa do Manuca, em Pinhal. Lá
aconteceram várias histórias clássicas. Vamos ver algumas. A
primeira que lembro é a história da “Águia”, uma caturrita que
era o “xodó” da irmã do Manuca. De “águia” o bicho não
lembrava nada. O animal já deveria ter uns 40, 50 anos de idade,
toda pelada (de tão velha), com apenas duas penas, meio
verde-amareladas, grudadas na traseira, onde outrora deveria ter sido
o rabo da ave. E o bicho era todo mimado, não podia ficar sozinha em
casa, tinha que ter gente junto cuidando, porque senão poderia ficar
“deprimida” ou tentar fugir, ou seja, uma frescurada só... Na
hora do almoço, ou da janta, a “Águia” comia no prato junto com
a dona, e de vez em quando ela dava uma “banda” pela mesa e
bicava dos outros pratos também. Todo mundo achava uma graça a
“águia” se esbaldando na mesa, e eu ficava indignado quando
aquele bicho abusado vinha e levava uma folha de alface ou um pedaço
de tomate do meu prato. A solução foi eu temperar com bastante
vinagre e pimenta o meu rango, aí eles afastavam a “águia”
quando ela se aproximava da minha comida. Num certo dia, lindo de
sol, pela manhã, a irmã do Manuca disse para nós ficarmos em casa,
cuidando da “águia”, que eles iriam cedo à orla e voltariam lá
pelas dez, dez e meia. Tudo bem, a gente nunca acordava antes das
dez, porque dormíamos tarde e ficávamos com muita “ressaca”
para acordar cedo. Acordei pelas dez e quinze e o Manuca já estava
de pé, na sala, cuidando da “águia”. O bicho soltava uns
guichos estridentes, que pareciam lanças e espadas arrebentando a
minha cabeça “ressacada”. Chegou umas onze horas e o pessoal não
havia voltado ainda, e eu falei pro Manuca que estávamos perdendo um
baita dia de sol, presos em casa, por causa daquele filhote de urubu
pelado; que não era justo, e se nós trancássemos bem as portas e
janelas da sala, o bicho não iria morrer se ficasse uns quinze ou
vinte minutos sozinho. O Manuca concordou com o argumento, fechamos
bem os vidros e as portas, e deixamos a “Águia” com a sala toda
pra ela. Demos uma espiadinha pela janela antes de saírmos, e vimos
que realmente ela ficava mais nervosinha quando estava sozinha, dando
voltinhas como se fosse um velho relógio descontrolado. Fora isso
ela iria ficar bem, não tinha mais idade para aprontar, no máximo
uma mijadinha ou cagadinha na sala, que a dona iria limpar com o
maior prazer e depois enchê-la de beijinhos... Finalmente fomos pra
praia, dia lindo, deu para dar uns mergulhos (tirar a ressaca), ficar
num quiosque, tomar uma geladinha, e curtir as “munaias”
desfilarem. Ficamos até umas duas da tarde e voltamos, porque as
barrigas estavam roncando de fome, e nosso dinheiro já tinha se
evaporado na ceva. Quando estávamos chegando perto da casa do Manuca
vimos um grupinho de gente, que olhava e apontava para cima da casa.
Não era uma coisa muito normal, algo havia acontecido. Cara, não
dava para acreditar, a cena era patética e de tensão: a “Águia”
havia escapado da sala (não pergunte como, porque verificamos todas
as saídas e frestas possíveis), conseguiu escalar a parede, ou
subiu pela árvore ao lado, e estava em cima do telhado. A irmã do
Manuca era um desespero só, chorava e ao mesmo tempo xingava o
“Azeitona” por sua tamanha irresponsabilidade. E a “Águia”
lá em cima, feliz da vida, abrindo as suas asinhas completamente
peladas, se assanhando quando batia um ventinho mais forte. Era um
corre-corre atrás de uma escada para poder fazer o resgate antes que
a caturrita caísse de lá. A “Águia” foi bem pro canto do
telhado, e num ímpeto de grande coragem e ousadia, abriu bem as
asinhas e se lançou num voo semelhante a um tijolo que cai de uma
obra. A irmã do Manuca deu um grito, e achei que iria desmaiar. A
“Águia” veio que era uma flecha, em sentido diagonal, e por
sorte, mais do que juízo, escapou de se estatelar na rua de
paralelepípido, e mergulhou fincada de cabeça num pequeno côlmoro
de areia, ficando somente a parte traseira, com as duas peninhas
aparecendo, imóvel. Tudo indicava que aquele foi o seu voo
derradeiro... A irmã do Manuca correu, pegou a ave, que estava
metade enterrada na areia, levou para dentro de casa, e foi dar os
primeiros socorros. Sentimos que o “clima” não estava muito bom
pra nós, e resolvemos retornar para a praia, porque o almoço não
sairia tão cedo. Teve final feliz, a “Águia” sobreviveu a sua
tentativa de voo suicida, e durou mais um bocado de anos, cada vez
mais pelada e somente com as duas penas onde um dia ficava o rabo..."
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